Histórico

COMO AS PRIMEIRAS COMUNIDADES
Todo bom missionário sabe que antes dele chegar a um lugar com o objetivo de anunciar a Boa-Nova de Cristo, o Espírito já chegou com muita antecedência, isso porque o Espírito Santo sopra onde quer. Digo isto para iniciar uma pequena, porém riquíssima história: a história de como o Bairro de Piranga II viu nascer e se desenvolver a Comunidade de São Clemente Maria, a história de como o Deus libertador continua a caminhar junto ao seu povo escolhido. Passemos à narrativa.
No princípio, era um monte de casas: Conjunto Habitacional Piranga II, entregue, em 1991, com água encanada, luz elétrica e muita poeira. Ninguém queria vir morar aqui, ninguém queria vir morar em uma casa que, no projeto original, tinha um quarto, uma cozinha, um banheiro e uma sala, mas que fora entregue aos moradores em forma de embrião, ou seja, um vão com 6m (seis metros) de largura por 4m (quatro metros) de comprimento. Principal problema dos primeiros proprietários das “casas”: como pagar uma “casa” durante 25 (vinte e cinco) anos que não correspondia ao que foi apresentado no projeto inicial e nem mesmo aos parâmetros estipulados pela ONU como uma moradia digna de ser habitada por uma pequena família? Suspendem-se os pagamentos das “casas” à Caixa Econômica Federal. Os primeiros proprietários recusavam-se a pagar pelo empreendimento que fugia totalmente do que fora inicialmente estipulado em contrato assinado entre a Caixa Econômica Federal e os contratantes. Estes se recusavam a vir morar num lugar, num bairro que não oferecia nenhuma infra-estrutura. Inicialmente não havia linha regular de ônibus coletivo, quando estes passaram a entrar no bairro, começaram os constantes problemas respiratórios nos corajosos que ocuparam suas casas. As empreiteiras MRM e Santa Bárbara responsáveis pela construção do Conjunto Habitacional, ao invés de colocarem asfalto nas duas avenidas principais do bairro, como estava previsto em clausura contratual, deixaram-nas apenas no cascalho, quando os ônibus passavam subia uma poeira que, além de causarem os já citados problemas respiratórios, sujavam todas casas com uma fina camada de pó. Se essa era a situação mais constante no bairro na maior parte do ano, quando chovia ocorria uma situação difícil de ser descrita, os ônibus não entravam no bairro. Os moradores que iam trabalhar de ônibus eram deixados na frente do bairro ou então na frente da Escola Rubina de Melo Moraes, atual Centro Educacional Argemiro José da Cruz. A violência chegou ao bairro e instalou-se, roubos passaram a ser constantes, arrobamentos às casas desocupadas também, nestes os ladrões levavam vasos sanitários, caixa d’água, pias de banheiro e cozinha, torneiras, tudo que fora entregue pelas construtoras MRM e Santa Bárbara.
O período mais crítico da história do nosso bairro foi o que comumente chamamos de O Tempo das Invasões. Naquele período, famílias inteiras que chegavam a Juazeiro em busca de oportunidades de emprego nas lavouras de cana-de-açúcar e na agricultura irrigada, que não tinham onde morar, invadiam as casas desocupadas e passavam a morar. Os “verdadeiros donos” chegavam muitas das vezes com violência pra expulsar famílias inteiras das casas ocupadas. O fato é que a fama de casa nova e sem dono se espalhou por toda a região. Lembro-me de certa vez estar na Piranga I e avistar uma família inteira, mais ou menos umas 12 (doze) pessoas, idosos, mulheres, crianças, adolescentes e homens jovens, era uma família típica de retirantes que vemos nos filmes nacionais, e perguntar onde que havia casas que podiam ser invadidas. A família, então, foi informada que não era ali, na Piranga I, mas, na Piranga II, que lá se poderia escolher qualquer casa desocupada e morar. Foi com essa fama que a Piranga II atraiu pessoas de diferentes índoles e de diferentes lugares do Nordeste. Foi também nesse período que a violência no bairro se alastrou: arrobamentos, assaltos e assassinatos passaram a ser constantes. Nesse tempo, a pobreza era tamanha na Piranga II que o povo não conseguia pagar as contas de água e energia que consumia. As ligações de água e energia, por sinal, eram em sua maioria clandestina, feitas por “ligação direta”, como se dizia. A COELBA, quando vinha promover os cortes do fornecimento de energia, às vezes desligava as ligações das casas de caminhos inteiros, do mesmo modo acontecia com a companhia de fornecimento de água, o SAAE. Bastavam os funcionários virar as costas e lá iam os moradores religar as ligações de água e de energia. Era uma situação interessantes, que hoje fazem-me soltar incontidas risadas, mas que no tempo era uma experiência dolorida de ser vivenciada. Lembro-me que nem a polícia dava jeito naquela situação. Situação que, longe de ser um caso de polícia, na verdade, era um caso de pobreza extrema. Era a metade da década de 1990, quando o plano real estava estabelecendo o equilíbrio inflacionário no país. O fato que, naquele tempo, era desesperador para quem necessitava morar aqui, para quem era obrigado a criar seus filhos num lugar que a insegurança reinava. A cultura era de 21h (vinte e uma horas) todos se trancarem dentro de casa. Era triste, saía-se para trabalhar, estudar ou fazer qualquer atividade na rua com medo de chegar a casa e não encontrar nada, ou de ser vítima de todo tipo de violência no retorno para casa, e o perigo era real. Mas sobrevivemos.
O Espírito Santo estava conosco. Como no Êxodo, o Deus do amor, o Deus libertador ouviu o clamor do seu povo, inspirou o casal Perpétua e Vidal a sair de casa em casa se oferecendo para ajudar a rezar o terço. Muitos moradores da Piranga II, quando ouviam as palmas batidas por dona Perpétua e seu Vidal em frente às suas casas, ficavam nervosos, assustados, com medo da violência. Em um desses casos, um morador desconfiado aceitou a oração e, ao final, perguntou a seu Vidal o valor monetário da reza. Seu Vidal, lembrando-se de São Pedro, respondeu: “Não custa nada, não. Não possuo nada, mas tudo que tenho coloco a sua disposição.” Era o ano de 1993, estava, desse modo, nascendo a comunidade eclesial de base do Bairro de Piranga II.
Nesse período, aconteceu a primeira missa no bairro. No caminho 9 (nove), debaixo de um juazeiro, celebrada por um redendorista que, por 40 (quarenta) anos, foi missionário aqui na diocese de Juazeiro.[1]Por um tempo, as missas, que eram esporádicas, passaram a ser celebradas na casa de Neide. Em seguida, passaram a ser realizadas em diferentes residências. Além de padre Guilherme, também vieram ajudar-nos a formar a comunidade os padres Noel e João, bem como o então diácono Donisete e o bispo D. José Rodrigues.[2]Este ainda desperta muita saudade em muitos membros da comunidade, visto que foi o segundo redentorista que passou em nossa vida. Nesse período, a Legião de Maria já se reunia na casa de seu Nelzito, já tínhamos encontros bíblicos semanais nas casas, já celebrávamos novenas de Natal nas famílias, encontros bíblicos no mês da bíblia, havia um grupo musical com pandeiro, triângulo, sanfona, zabumba e violão que animavam todos os nossos encontros, as rezas, como chamávamos. E começavam também a funcionar os primeiros encontros de catequese, que tinham o objetivo de preparar os adultos e as crianças para receberem os sacramentos do batismo, da confissão e da eucaristia. Alguns tiveram a alegria de receber, nesse período, a comunhão pela primeira vez das mãos do bispo D. José Rodrigues, daí o carinho que muitos na comunidade ainda nutrem por ele, inclusive Eloilton, que ainda se emociona ao se recordar dele.
Quando a comunidade já estava em pleno vapor, lembramos que precisávamos de um padroeiro. Como cada membro da comunidade tinha seu santo de devoção, formou-se uma situação difícil, visto que cada membro queria impor seu santo particular. A melhor maneira pensada para resolver aquele impasse foi a realização de uma eleição para a escolha de um padroeiro ou padroeira para a comunidade. Interessante que só queriam santos conhecidos: São José, Santo Antônio, Santa Luzia, São Cosme e São Damião, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Lurdes, Nossa Senhora de Fátima, e por aí se ia. De certa forma o impasse continuou, foi quando, em meio aquele caos democrático, D. José Rodrigues, em 2001, reservadamente, sugeriu a seu Vidal a escolha de um santo redentorista, um ilustre desconhecido do povo de Piranga II, mas que fora um padre muito dedicado, um padre que fizera em vida a mesma escolha de Cristo, a escolha preferencial pelos mais pobres. O nome do Santo era São Clemente Maria Hofbauer. Seu Vidal, com toda a sua humildade, respondeu: “Bem, D. José, nós não conhecemos esse santo, mas se o senhor sugere, nós aceitamos.” D. José Rodrigues respondeu: “Olhe, seu Vidal, se a gente escolhe esse santo, eu poderei ajudar mais a comunidade a construir a igreja.” Depois das palavras do bispo, a comunidade apaziguou, São Clemente Maria era unanimidade entre todos os membros da comunidade.
D. José Rodrigues conseguiu uma parte do dinheiro para iniciar a construção de nossa tão sonha igreja. Foi quando chegou um americano muito sério para trabalhar conosco, um certo padre José Potter. [3]Esse homem, que provocava em nós um profundo respeito, mudou a vida de nossa comunidade. Ele é um missionário nato, sabe formar líderes, sabe formar pessoas autônomas, pessoas capazes de assumir responsabilidades. Em março de 2003, padre José se reuniu pela primeira vez com a comunidade. Tentou organizar a catequese, mas, insistentemente não vingava. Mas era dedicado nas celebrações da Santa Missa, inicialmente aos sábados e depois aos domingos, às 17h30. Hoje, olhando nossa história, podemos afirmar que só crescemos porque tivemos a Santa Eucaristia à nossa disposição. Mas, nesse tempo, nada era tão fácil, pelo contrário, eram tempos difíceis aqueles no quintal de dona santa: missa com 20 (vinte) pessoas no máximo; coral desafinado; vento apagando todas as velas das celebrações e; quando o tempo armava chuva, apressávamos a missa, do contrário não aconteceria a consagração. Esse tempo foi tão difícil que padre José, ao se recordar daquele período, afirma que só pensava em desistir. Mas o Espírito estava conosco e não o deixou desanimar.
Sonhávamos com nossa igrejinha. Não entendíamos muito bem aquelas paredes feias, fora de propósito, que diziam ser uma igreja em construção, mas que duvidávamos, porque não apresentavam nenhum aspecto de um formato de igreja.  O que sabíamos e imaginávamos ser nossa futura igreja estava abandonada, não tínhamos nenhuma perspectiva de inaugurá-la. Quando padre José não mais agüentava celebrar no tempo, resolveu procurar o bispo D. José Rodrigues para saber a respeito de uma definição para a continuação ou conclusão da construção de nossa igreja. D. José Rodrigues disse que não tinha dinheiro suficiente para o término, mas que poderia colocar o teto, as portas, realizar as instalações elétrica e hidráulica, e mais alguns trabalhos indispensáveis para que tivéssemos nosso local celebrativo, nossa igreja. D. José Rodrigues disponibilizou para a realização do trabalho final de nossa igreja o valor de R$ 17. 724,40 (dezessete mil setecentos e vinte e quatro reais e quarenta e centavos).
Chegou o tão sonhado dia da inauguração de nossa igreja. Domingo, 7 (sete) de setembro de 2003. As paredes eram branquinhas, o chão no contra-piso, todo molhado, para evitar a poeira, que era grande dentro de nossa igreja. Havia também na inauguração de nossa igreja uma mesa de pernas tortas, que servia de altar da consagração, e um povo muito feliz, que demonstrava essa felicidade através de sorrisos que chegavam com facilidade. Era um povo pobre, mas muito feliz, de voz solta, de coração alegre. Aquele foi um dos momentos mais lindos de nossa comunidade, um dos momentos mais marcantes. Todos estávamos vivendo a mesma emoção, partilhávamos da mesma felicidade. Éramos uma parte do povo de Deus que estava numa das periferias de Juazeiro mais esquecidas pelo poder público (E que continua esquecido: a poeira ainda é absurdamente forte; o asfalto está em péssimas condições, todo esburacado; a varrição das ruas não é realizada regularmente pela prefeitura; a coleta de lixo é precária; o serviço de transporte público não atende à demanda dos moradores e; se antes não tínhamos problemas com o saneamento, agora, o esgoto a céu aberto é uma presença constante no nosso dia-a-dia). Mas, o fato, é que estávamos naquele dia muito felizes, que, embora nossa capela fosse muito simples, para nós era como se ela fosse a melhor e mais luxuosa catedral da Itália, da França, do Brasil, do mundo.
Com a inauguração da igreja, a comunidade ficou mais animada. Os grupos e pastorais fortaleceram-se, a primeira festa de São Clemente Maria aconteceu em abril daquele ano, vieram os primeiros casamentos na igreja e os primeiros batizados, no dia 30 de novembro, e as primeiras comunhões: a de Reginaldo, Almir e Anderson, os que, juntamente com Eloilton realizaram as primeiras visitas às casas quando padre José veio trabalhar conosco. A catequese foi se fortalecendo cada vez mais, juntamente com o grupo de jovens que chegou a se reunir com 40 (quarenta) jovens, o grupo de coroinhas, a Legião de Maria e o grupo do Terço dos Homens. Mas era a festa do nosso querido padroeiro que mais mereceu nossa atenção, achamos que ele tem muito carinho para conosco e, por termos um santo poderoso, tudo dá, deu e sempre dará certo na nossa comunidade.
Nas nossas primeiras procissões, tínhamos apenas um quadro deixado por D. José Rodrigues. Era interessante uma procissão com um quadro, mas não tínhamos vergonha, pelo contrário, tínhamos orgulho, afinal, era nosso querido padroeiro. Finalmente, lembramos de outra antiga promessa de D. José Rodrigues: “Quando a igreja for construída, eu vou conseguir uma imagem bem bonita de São Clemente Maria. Vou consegui-la com os redentoristas.” Lembramos da promessa. Mas, como entrar em contato com D. José Rodrigues? Falamos com padre José. E no final de 2006, padre José se comunicou com D. José Rodrigues e o lembrou da antiga promessa. D. José Rodrigues ficou muito feliz em ter notícias da última comunidade formada por ele na diocese de Juazeiro, e disse que mandaria uma bonita imagem. Achávamos que seria uma imagem simples, de uns 30 cm (trinta centímetros), no máximo, mas, eis a surpresa! Foi outro momento importantíssimo o da chegada da imagem à nossa comunidade. Havia pessoas que não queriam mais sair da igreja por causa da imagem. E no dia da bênção da imagem de São Clemente Maria, a igreja ficou lotada.
A comunidade crescia e amadurecia, e os sonhos continuavam. Como terminaríamos a construção de nossa igreja, se não tínhamos dinheiro nenhum? No fundo esperávamos um milagre de São Clemente Maria. Em 2007, padre José conseguiu um dinheiro para colocar cerâmica na igreja e, em 2008, ele conseguiu dinheiro para fazer a capela do santíssimo sacramento, colocar janelas e ventiladores. Estávamos muito felizes. E eis que chegou um milagre maior: as instituições da Alemanha que mandaram dinheiro no tempo de D. José Rodrigues para a construção de nossa igreja exigiam da diocese de Juazeiro um relatório que comprovasse a conclusão da igreja, do contrário não mais poderia ajudar a diocese financeiramente. Foi quando D. José Geraldo da Cruz, atual bispo diocesano de Juazeiro, que já conhecia a comunidade, visto que já tinha presidido a festa de 2008, viu-se obrigado a ”deixar a capela com cara de igreja”, fazendo uso de suas palavras. E para custear o término da igreja de São Clemente Maria, a diocese de Juazeiro empregou o valor inicial de R$ 52. 901, 30 (cinqüenta e dois mil novecentos um reais e trinta centavos). Estava pronta a nossa igreja de São Clemente Maria, em abril de 2009. Milagre? Há na comunidade pessoas que acreditam piamente, não somente neste, mas em muitos outros milagres de são clemente Maria.
Agora, a partir do segundo semestre de 2010, a comunidade iniciou um tempo de mudanças consideráveis. A paróquia de Santa Teresinha, a qual pertence a comunidade de São Clemente Maria, foi entregue a uma comunidade religiosa e, com isso, padre Donisete Soares deixou de ser o pároco e padre José deixou de ser seu vigário. Foi uma mudança inesperada para a comunidade, mas que a aceita com naturalidade, embora não deixe de sentir sofrimentos, visto que padre José é quase idolatrado por todos, principalmente pelas principais lideranças da comunidade, muitas da quais ele acompanha desde a pré-adolescência. Lideranças que ele descobriu e formou, formou-as sujeitos autônomos, líderes responsáveis, protagonistas de sua própria história, protagonistas da história da comunidade de São Clemente Maria.


[1] William Joseph Fitzgerald, padre Guilherme, como ficou conhecido entre o povo, é um padre redentorista que chegou em missão à diocese de Juazeiro ainda no tempo de D. Tomás Guilherme Murfhy, primeiro bispo da diocese e amigo de turma de seminário de padre Guilherme, e que retornou ao seu país de origem, Estados Unidos, somente no ano de 2010, aos 91 (noventa e um) anos de idade, para, finalmente, viver sua merecida vida de aposentado.
[2] D. José Rodrigues de Sousa foi o segundo bispo da diocese de Juazeiro. Hoje, está aposentado, sendo, portanto, bispo-emérito da diocese de Juazeiro. Mora na cidade de Trindade – GO, no Santuário do Divino Pai Eterno.
[3] Padre José, como padre Guilherme, chegou à diocese de Juazeiro ainda na gestão de D. Tomas, foi pároco por 16 (dezesseis) anos em Remanso – BA. A pedido do seu bispo D. Valter, retornou à sua diocese de origem em 1981. Ao aposentar-se, retornou ao Brasil, onde assumiu parte da paróquia de Santa Teresinha até o segundo semestre de 2010, quando assumiu a sede do distrito de Carnaíba do Sertão.